Para ler ouvindo Sérgio Sampaio - Eu sou aquele que disse
A morte do corpo é o que menos me importa. Podem tratar meu corpo com uma banana caída. Joga a casca fora, mas o recheio, a polpa, a parte branquinha de comer, se puder, só por educação, não joga não, é tudo que tenho para oferecer e para levar comigo.
Repara, se a gente fosse o próprio corpo, qualquer machucadinho que nos tirasse pedaço deveria, por lógica, fazer com que a gente perdesse a mesma quantidade do que se pensa, sente. Se a gente é o corpo, tudo que se pensa e sente também é ele, certo? Imagina. Um corte de 3 centimetros no dedo, perde-se 3 centímetros de carinho pela vó. Com a paralisia das pernas, metade do que se pensa sobre o mundo, sobre as ideias da nova economia para novos tempos, as propostas de políticas públicas para antigos problemas sociais também deveriam ser paralisadas, perdidas. Mas não é isso que acontece.
Ah! E os acidentes do cérebro? O que que tem? Quem não consegue traduzir o que pensa já deixou de pensar? Quem não consegue demonstrar o que ama também deixou de amar? Converse com uma pessoa com transtorno esquizofrênico, visite um CAPS, alguém em estado vegetativo, que seja, e prove que ali não há pensamento, não há sentimento, que só há carne e troca de nutrientes entre células.
Minha companheira é Assistente Social, especializada em Saúde Mental. Durante todos os anos que ela trabalhou no CAPS, sempre que ia para buscá-la, todos os dias, ficava lá esperando e conversando com os usuários. Como ela gosta muito de falar, gosta muito do que faz e não sai do trabalho antes de resolver toda e qualquer pendência, eu ficava muito tempo no CAPS, conversando também.
Lá, conheci um amigo, Seu Orlando, esquizofrênico, um senhor magrinho, negro, de unhas bem compridas de tocar violão, um sorriso desdentado que era a coisa mais bonita de se ver, ainda que só se podia ver a gengiva. Tudo isso emoldurado por uma barba branca volumosa, um chapéu de palha e um palheiro de fumo goiano no canto da boca. Era boniteza pura. A falta dos dentes não escondia o sorriso, como a gente não é o corpo, o sorriso também não são os dentes, o sorriso de Seu Orlando era a alegria, a felicidade, a brincadeira, a graça da vida e de viver. E ele me entregava tudo que é o sorriso quando me via, porque éramos amigos.
A gente que acha que vive uma "normalidade" mental, acredita que vai conversar com um usuário do CAPS como se conversasse com uma criança. Erro brutal. O transtorno mental é o corpo, e o corpo não é a gente. Seu Orlando falava mais do que eu conseguia ouvir, porque ele ultrapassava o meu entendimento. A originalidade das análises sobre o comércio do café - tradicional da região do sul de Minas Gerais -, da constituição das estrelas, da organização das economias pessoais, da importância da agricultura familiar e da liberdade.
Certa vez, perguntei ao Seu Orlando o que era liberdade. Ele me disse que liberdade é pensamento. É boiada que vai e não mais volta. É rio que secou. Onde não tem mais água, mas que deixou uma trilha que leva tudo ao mar. E lá, no mar, não falta água. Água temperada.
Lembra da casca de banana? Então, nessas horas é preciso tomar cuidado para não comer a casca e jogar a polpa fora. Se Seu Orlando fosse seu corpo tudo que ele seria era pedaços faltando e um cérebro em transtorno. Mas como Seu Orlando não é seu corpo e eu também não, a gente se entende como e do jeito que a gente é: em pensamento. A gente é pensamento. É isso que quero que fique quando eu me for, pensamento. O que não for de pensar, pode jogar fora que nem uma casca de banana. Quando me for, serei o rio seco, a boiada que foi, o pensamento é a trilha e no final dessa trilha é que vamos nos encontrar, em liberdade. Eu, Seu Orlando e você.
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